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Entrevista: Conversa sobre o nosso passado

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O sexto texto da série sobre o Taboado é uma entrevista com a doutora Maria Celma, professora do Curso de História da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), Campus de Três Lagoas. O último artigo da série, sobre a Caiapolândia e o sertão dos Garcias, pode ser lido aqui.

Professora, as primeiras correntes de povoamento de Santana do Paranaiba vieram de Minas Gerais na primeira metade do século XIX, 200 anos atrás. Quais foram as razões para a migração dos mineiros para o sul de Mato Grosso?

No passado, a migração no Brasil se deu por vários fatores. Em primeiro lugar, pela necessidade de partir em busca de um lugar onde se pudesse plantar e ver chegar o tempo da colheita, como no caso dos agregados, camaradas, pobres e livres em geral. Também pode ser mencionado o aumento do núcleo familiar e o desejo de ampliar a posse de terras, pois ter terra no Brasil, desde sempre, foi – e continua sendo – sinônimo de poder. No caso dos “pioneiros” que chegaram ao sul do Mato Grosso no século XIX, eles vieram em busca de novas áreas para a criação de gado.

No século XIX, a região de Santana do Paranaíba era conhecida como o “Sertão dos Garcias”. De onde vêm o nome?

O nome advém da família “Garcia Leal”. Os irmãos Garcia, junto com agregados, camaradas e escravizados, adentraram essas terras. Com eles, vieram outros entrantes, como as famílias Lopes e Queiroz, que se apossaram de áreas com o olhar “a perder de vista”. Joaquim Francisco Lopes, em sua obra “Derrotas”, descreve o modo como as fazendas iam se constituindo, especialmente no período de 1829 a 1857, e o seu papel e de seus irmãos e pai em meio ao processo de ocupação dos Campos de Vacaria e do sul de Mato Grosso.

Ressalte-se, porém, que as terras do sul do Mato Grosso não estavam vazias, já que os Caiapó há muito tempo nelas habitavam. Também vale observar que não somente de Minas, mas da região de Franca (SP) e de Goiás chegaram por essas terras os primeiros ocupantes não-indígenas. Essa leva de migrantes também incluiu aqueles que partiram das minas do Cuiabá com o esgotamento da exploração mineradora no decurso do século XVIII.

A ocupação de Santana foi feita por meio da demarcação de fazendas com extensões a perder de vista. Qual era o regime de propriedade à época?

Não havia propriamente um regime de ocupação das terras na época. Em 1822, o Regime de Sesmarias foi extinto e, até a promulgação da Lei de Terras em 1850 (regulamentada com o Registro Paroquial de 1854), não havia um código de regulamentação da propriedade da terra no Brasil, ainda que em determinados lugares sesmarias continuassem a ser doadas à revelia da lei. Thereza Petrone, pesquisadora da USP, chama o período de 1822 a 1850 de “fase áurea do posseiro”. É importante ressaltar, porém, que estamos falando do “grande posseiro”, o principal beneficiário da ausência de regulamentação da propriedade da terra. Como ocorria no período colonial, pouco espaço de ocupação sobrava para o pequeno roceiro naquele universo marcado pela escravidão e pela concentração de terra. Também é importante comentar que a Lei de Terras não beneficiou os pequenos posseiros, pois determinava que “casebres e pequenos roçados” não poderiam ser legalizados com o título de propriedade.

Além disso, em muitos aspectos, a Lei de Terras facilitou a apropriação indevida de grandes extensões de terras devolutas. Muitos “ditos proprietários” se apossaram de terras mediante a falsificação de documentos e a corrupção de agentes públicos. A usurpação de terras se deu inclusive nas “terras de santo”, como ocorreu em Aparecida do Taboado e Três Lagoas.

Relatos de época informam sobre a existência de diversas comunidades indígenas no sul de Mato Grosso. Quais eram as principais etnias que viviam na região?

No século XIX, a etnia predominante era a Caiapó. No começo do século XX, alguns poucos Caiapó ainda podiam ser encontrados nas margens do Paraná e Tietê. Com a chegada das “frentes pioneiras” e o desenvolvimento da pecuária, esses indígenas migraram para o interior, para Goiás e a região amazônica. Muitos foram dizimados por doenças e pela violência dos grandes posseiros. Outros foram “inseridos na civilização”, segundo o discurso das autoridades provinciais da época. Além dos Caiapó, havia também os “Colorado” – como eram chamados os Kaingang -, que viviam entre São Paulo e o sul de Mato Grosso e chegavam até a estrada de Goiás. Os Colorado eram temidos pelos monçoeiros, pelos sertanistas e pelos entrantes dessas terras. Nos discursos oficiais, foram retratados como “ervas daninhas” que impediam o desenvolvimento da “civilização”. Em Brasilândia, é importante registrar que existe ainda a etnia dos Ofayé, cuja história precisa ser resgatada.

O que os historiadores sabem sobre os conflitos pela posse da terra entre os posseiros e os povos indígenas que habitavam a região?

Há registros de confrontos entre indígenas e pequenos e grandes posseiros. Nesses confrontos, os grandes posseiros formavam milícias particulares, muitas vezes compostas por agregados e indígenas a serviço da “limpeza” das áreas. São as contradições da história. Os povos indígenas resistiram como podiam ao avanço sobre suas terras. Relatos sobre as monções no século XVIII, partindo de Porto Feliz (SP), antiga Araritaguaba, até Cuiabá, fazem referência aos Caiapó como povo “feroz”. Esse discurso servia para combater os indígenas.

Estimativas indicam que Santana do Paranaíba contava com 1500 habitantes na década de 1850. Pode descrever como aquela sociedade estava organizada?

Estava organizada em bases escravistas, como ocorria em todo o Império. Não foram poucos os escravizados na região. No mapa da população da Província de Mato Grosso, organizado com base no trabalho de Joaquim Felicíssimo de Almeida Lozada, havia cerca de 300 fogos – ou seja, 300 casas – nessa região em 1848, cuja população era de 800 livres e 400 escravos. Há inclusive relatos de violência contra escravos em Santana do Paranaíba. Em 1862, acusado de roubo de um colar de pouco valor, um escravo chamado Sebastião morreu açoitado pelo seu senhor, Isaias Joaquim Guimarães, que saiu do episódio impune.

Era uma sociedade de bases escravistas e senhoriais. A fonte de poder e renda era a propriedade de grandes extensões de terra e de escravos. Além de senhores e senhorinhas, de sinhôs e sinhás, a sociedade era composta também de escravizados e pobres e livres, moradores de favor em terras alheias, como os agregados, e camaradas de fazendas. Os camaradas faziam o trabalho mais árduo no levantamento de ranchos, na constituição das áreas de pastagens para a criação do gado e no plantio de roças.

Qual seu foco de pesquisa atual na universidade?

A memória dos agentes sociais, especialmente de homens e mulheres que não levam nomes de rua. Qual o lugar ocupado pelos pequenos posseiros na história da região? Precisamos entender por que um bairro em Paranaíba é composto majoritariamente de negros. Para além da história do pioneiro, contar a história dos Caiapó, dos escravizados e dos pobres e livres é um dos meus maiores desafios.

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