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Na estrada do Piquiri

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Para o sétimo artigo da série histórica sobre o Taboado, foi entrevistada a historiadora Cássia Queiróz. De Aparecida do Taboado, Cássia obteve mestrado em História pela Universidade Federal do Mato Grosso do Sul. É autora do livro Pobres livres nos sertões do sul de Mato Grosso, publicado em 2020 pela editora CRV, cuja resenha pode ser lida aqui. Entre outros assuntos, o livro resgata a história da antiga Estrada do Piquiri, importante via de ligação entre Cuiabá e Santana do Paranaíba (atual município de Paranaíba) no século XIX.

Um dos temas de sua pesquisa acadêmica foi a Estrada do Piquiri, construída no século XIX para ligação entre Cuiabá e Santana do Paranaíba. Como surgiu seu interesse por aquela antiga estrada, já desaparecida?

Talvez o interesse tenha surgido ainda na minha adolescência. A leitura do romance “Inocência”, do Visconde de Taunay, me fisgou no primeiro parágrafo, onde ele descreve uma estrada que cortava a “extensa e quase despovoada zona da parte sul-oriental da vastíssima Província de Mato Grosso”, que ligava a Vila de Santana do Paranaíba ao “sítio abandonado de Camapuã”. Além disso, tendo crescido em Aparecida do Taboado, sempre ouvi falar na tal Estrada Boiadeira do Taboado. Isso despertou minha curiosidade e, já durante a graduação em História, ensaiei as primeiras pesquisas sobre a região na minha monografia de conclusão de curso.

Sobre as origens da Piquiri, quando foi iniciada e concluída a estrada?
Segundo o Professor Eudes Fernando Leite, em seu livro “Marchas na História: Comitivas e Peões-Boiadeiros no Pantanal”, ela foi iniciada em 1808 e só finalizada em 1836.

A respeito das condições da estrada, tratava-se de um picadão? Como era a estrada?

Sem dúvida, era um picada, principalmente nos primeiros anos após a abertura. O Professor Eudes chamou atenção para o fato de que usar a palavra estrada, no caso da Piquiri, não passa de uma força de expressão, pois se tratava na verdade de uma “picada”.

Por que a estrada tomou esse nome – Estrada do Piquiri?

O traçado da estrada passava por um destacamento militar que ficava às margens de um córrego chamado Piquiri — provavelmente se trate do Rio Piquiri entre Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. Tentar entender a localização desses caminhos foi um dos desafios da minha pesquisa. Eu lia os documentos com um mapa hidrográfico do estado em mãos, mas é difícil saber com certeza porque existem diferentes localidades com o mesmo nome e houve algumas que mudaram de nome com o tempo.

Qual era a necessidade de ligação entre Cuiabá e Santana do Paranaíba? Por que esse traçado?

Com a decadência da mineração em Cuiabá no final do século XVIII, que se apoiava muito no transporte fluvial (as monções), ganharam importância outras atividades, como a criação de gado e alguns cultivos. Isso fez crescer a necessidade de caminhos terrestres. Havia também interesses, tanto das autoridades da capital quanto das locais, em estreitar a relação entre Cuiabá e as localidades mais distantes da província, como era o caso de Santana do Paranaíba. É importante destacar que as estradas nessa época também representavam um meio de comunicação — por elas iam e vinham as notícias, as verbas e as ordens do Governo Provincial.

Na época, governava Santana do Paranaíba José Garcia Leal. Teve esse político algum envolvimento com a construção da Piquiri?

Teve sim. Há registros que mencionam a atuação de José Garcia Leal em obras de abertura e manutenção desse caminho, bem como na ligação que partia do porto Taboado com a cidade paulista de Piracicaba.

Então podemos dizer que a Piquiri teve relação com o porto Taboado, fundado no final da década de 1830.

Os dois caminhos, o que vinha de Piracicaba e o Piquiri, foram ao encontro um do outro, tanto no traçado, quanto no que representavam para as atividades econômicas na região, ligando-se no porto. Ambos foram decisivos, por exemplo, no comércio de gado entre as províncias de Mato Grosso e São Paulo.

Sabemos que o traçado da Piquiri atravessou territórios que pertenciam, no passado, à comunidade dos Caiapó. Na construção da estrada, houve relatos de dificuldades com aquela etnia?

Nas fontes que analisei, há várias menções sobre a utilização de mão de obra indígena e de outros trabalhadores pobres livres na abertura desse caminho, inclusive sob a forma de trabalho compulsório, pela força. Apesar das muitas referências a conflitos com os povos originários de diversas etnias, não deparei com nenhum documento que mencionasse embate direto com indígenas durante a construção da estrada do Piquiri.

Temos alguma ideia sobre como o transporte de mercadorias era feito nessa antiga estrada?

Em minha pesquisa, encontrei referências ao transporte de boiadas. As tropas eram conduzidas por um boiadeiro, responsável pelo carregamento, auxiliado por trabalhadores livres e escravizados. Não deparei com informações detalhadas sobre os animais e as formas de armazenamento de cargas.

Que vestígios ainda temos da Piquiri? Quando ela desapareceu?

A Piquiri funcionou a partir 1836, quando foi concluída. Não sei dizer até quando a estrada foi utilizada. Suponho que deva ter sido até a construção das principais rodovias da região, talvez até aproveitando parte do traçado da Piquiri, mas não tenho nenhuma fonte que indique isso. Não tenho notícia de que reste algum vestígio ou ruína desse caminho, mas acho bem provável que haja algum, inclusive no traçado de estradas atuais. Como desenvolvi minha pesquisa a partir da análise de fontes escritas, só verifiquei os locais pelas palavras dos cronistas – devo confessar que essa é uma frustração que carrego, não ter podido conhecer in loco boa parte das paisagens que estudei. Acredito que uma pesquisa de campo nos locais mencionados nos documentos traria resultados muito interessantes.

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