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A vila de Santana do Paranaíba: uma história remota que nos interessa a todos

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Cassia Queiroz da Silva é autora do livro Pobres livres nos sertões do sul de Mato Grosso, recém publicado pela editora CRV. A autora, pelo que pude apurar, morou em Aparecida do Taboado e fez graduação em história no campus de Três Lagoas da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul. Foi por meio deste jornal que soube da publicação do livro dela, que tem por base sua dissertação de mestrado sobre a ocupação histórica dessa parcela do Mato Grosso do Sul que antigamente pertencia à jurisdição da vila de Santana do Paranaíba e que hoje compreende os vários municípios da costa leste do estado, como Paranaíba, Aparecida do Taboado, Inocência, Selvíria, Cassilândia, Três Lagoas e Aguas Claras. O título do livro e o tema que ele aborda despertaram de imediato minha curiosidade. Comprei a versão eletrônica do livro e li-o com grande interesse de uma só vez em apenas um dia.

Tendo nascido e me criado em Aparecida do Taboado, sempre ouvi histórias orais sobre o passado da região – a antiguidade de Paranaíba, a importância do porto Taboado para a formação do município de Aparecida e para o transporte de gado em direção à Araraquara, o poder desmesurado dos antigos grandes fazendeiros. Há, porém, poucos registros disponíveis sobre o que realmente aconteceu nas suas origens, alguns séculos atrás, a partir da ocupação do centro-oeste com a descoberta das minas de ouro nas cercanias de Cuiabá em 1730. O mais célebre desses registros foi, sem dúvida, o romance “Inocência”, de Alfredo d’Escragnolle Taunay, que traça retrato ficcional dos elementos que compunham a geografia e a situação social dessa região no século XIX. Taunay esteve de passagem no Mato Grosso, a serviço do Império, no contexto da Guerra do Paraguai, e registrou naquele romance e em outros escritos suas impressões da vila de Santana do Paranaíba e da vegetação do cerrado que a cerca. Tempos atrás, esse romance constituía leitura obrigatória para estudantes secundaristas do Mato Grosso do Sul.

Ainda que indiretamente, a região da costa leste também foi tratada na obra “Monções”, de Sérgio Buarque de Holanda, que registra a dinâmica de transporte fluvial entre a capitania de São Vicente (atual estado de São Paulo) e a de Mato Grosso, durante o ciclo do ouro em Cuiabá. O livro descreve como, no século XVIII, numerosas embarcações partindo de São Paulo navegavam o rio Tietê até o Paraná e seguiam viagem pelo Pardo em direção às minas cuiabanas. Esse era o principal e mais rápido meio de transporte de pessoas e mercadorias entre as duas regiões na época.

Várias camadas da história acumularam-se na nossa região ao longo do tempo, portanto. A mais antiga tem por eixo principal as atividades das bandeiras paulistas que penetraram o território de Mato Grosso para o apresamento indígena no século XVII. Essa fase foi seguida pelas monções que navegaram pelos rios da região até as minas de Cuiabá no século XVIII. Com o esgotamento do ciclo aurífero, a região foi ocupada por pecuaristas provindos de Minas e São Paulo no século XIX. Foi nesse contexto de histórias acumuladas que floresceram, portanto, os municípios da costa leste no século XX.

O livro de Cassia de Queiroz se vale desses e outros relatos como pano de fundo para descrever o processo de povoamento da vila de Santana do Paranaíba a partir da terceira década do século XIX, com o fim do ciclo de ouro em Cuiabá e o desenvolvimento da pecuária bovina. Adicionalmente, ela compilou informações de fontes primárias (correspondências oficiais, inventários, documentos públicos) para relatar a dinâmica social que impulsionou a posse das terras da região (então habitada pelos caiapós, os quais foram de lá violentamente deslocados) e que levou à fundação da freguesia de Santana do Paranaíba em 1838, mais de 180 anos atrás.

Alguns fatos reportados no livro chamam a atenção. O primeiro diz respeito ao processo de demarcação das terras. Registros da época mostram que grandes fazendas foram demarcadas “no olho” pelos homens que integravam as primeiras expedições de ocupação. De fato, foi assim, simplesmente com base “no olho”, sem qualquer outra referência, que José Garcia Leal e outros fazendeiros se apoderaram de terras com extensões a perder de vista. Essa aparente facilidade na posse da terra esbarrava, porém, num limite sociológico (muito bem assinalado pela autora) que refletia a estratificação da sociedade escravista da época: somente os “homens de sobrenome” podiam demarcar fazendas – desse direito, ressalte-se, ficavam excluídos os escravos, obviamente, mas também os homens pobres que faziam parte das expedições na condição de agregados e camaradas. Esse fato é particularmente revelador sobre o caráter elitista da ocupação das terras, que levou não somente à concentração fundiária como também à marginalização das famílias de homens pobres. Os reflexos desse processo histórico podem ser vistos ainda hoje no panorama fundiário da região.

Outro fato interessante relatado no livro tem a ver com a jurisdição da Vila de Santana do Paranaíba. Anteriormente à chegada das primeiras expedições em 1830, o território atual da costa leste pertencia oficialmente à província de Goiás – nem sempre, portanto, ele fez parte do Mato Grosso. Teria sido o aparente descaso da província de Goiás com a sorte da pequena povoação de Santana do Paranaíba (Taunay estimou ali 800 pessoas) que levou José Garcia Leal, o maior fazendeiro da região, a deslocar-se até Cuiabá para pedir ao presidente da província de Mato Grosso a permissão para que ele governasse aquele território aparentemente esquecido pelas autoridades públicas. Em Cuiabá, Garcia Leal soube sensibilizar seus interlocutores. Além de lograr a própria nomeação como “delegado” (equivalente a administrador) da Vila de Santana do Paranaíba, convenceu o presidente da província de Mato Grosso a tomar uma série de medidas importantes para a vila, como o estabelecimento de uma linha de correios para as comunicações oficiais e a abertura de vias de transporte para a integração do Mato Grosso com a província de São Paulo, como a estrada do Piquiri e o porto Taboado, cujo funcionamento está na origem do município de Aparecida do Taboado. Com o tempo, construiu-se a igreja matriz em Paranaíba, possivelmente a mais antiga da diocese. O litígio entre as províncias de Mato Grosso e Goiás pela posse da vila de Santana do Paranaíba levou a escaramuças, de que foi exemplo a ocupação militar do porto de Alencastro por tropas de Goiás. Nessa confusão, os habitantes da vila chegaram a encaminhar um abaixo-assinado para que o governo imperial reconhecesse a região como parte do Mato Grosso. Esse litígio se arrastou por várias décadas e só se encerrou definitivamente em 2001 após decisão do STF que confirmou a atual configuração geográfica dos estados.

Todos esses fatos estão narrados no livro de Cassia Queiroz da Silva, que tem o mérito de contar a história dos primórdios da nossa região de maneira crítica e contextualizada e que merece a mais ampla divulgação. Trata-se de uma peça importante no quebra-cabeça mais amplo sobre a formação histórica da região. Ainda há poucos registros disponíveis sobre as origens de Aparecida do Taboado, por exemplo – as primeiras povoações, a dinâmica fundiária, a evolução política. Desse novelo ainda há muita linha a ser desenrolada. Faço votos para que outros historiadores se animem a seguir o exemplo de Cassia Queiroz e se aventurem a continuar relatando o que nossos antepassados fizeram na costa leste e nos legaram nos últimos 200 anos.

Marcos Vinicios de Araujo Vieira, 36 anos, é diplomata. Natural de Aparecida do Taboado, atualmente mora em Buenos Aires, na Argentina.

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