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Crônica: As prosas do Forta

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Oi, sou Marcos Vinicios. Se não me conhece, muito prazer. Nasci e cresci em Aparecida do Taboado, mas deixei a cidade há vinte anos. Sou filho do Zé Carlos, da antiga bocha, e da Silmara, filha do Armando. Agora moro em Buenos Aires, na Argentina. Estou aqui a serviço há um ano, mas morro de saudades por Aparecida. Não da cidade, propriamente. De alguns lugares, sim, sinto uma falta danada, a beleza do rio Paraná e as árvores do cerrado, sobretudo. Mas o que mais me dói é a distância dos amigos, isso sim. Agora nesta pandemia, a dor é ainda maior.

Tenho um grande amigo em Aparecida. Ele se chama Edson, mas se eu o chamar assim ele logo vai estranhar e achar que algo vai mal na nossa relação. Quase todos o chamam de Fortaleza, que esse é seu apelido popular. Eu, porém, o chamo de Forta, que é um diminutivo carinhoso, e assim nos entendemos bem. Ele foi meu vizinho quando lá morava, viu-me nascer e crescer correndo descalço nas ruas do nosso bairro. Minha casa ficava de frente para a dele, lá perto do recinto da festa do peão. Passei a infância no quintal do Forta, a maior parte do tempo em cima dos pés de manga que ali vingaram (era uma manga diferente, tinha um nome algo sensual – peito de moça -, nunca mais vi delas em nenhuma parte).

Para quem não sabe, o Forta foi um motorista de ônibus da prefeitura. Não há estudante da zona rural, ou estudante de faculdade, ou atleta da cidade que não o conheça. Se duvida, pode checar. Além de muito conhecido, o Forta é um cara muito querido, todos o querem bem. Agora ele está aposentado. Sim, o tempo passou, e ele teve de afastar-se dos volantes, muito a contragosto, pude reparar. Pois se dele dependesse, o Forta continuaria dirigindo até o final dos tempos, tamanha é a paixão que tem por carros. Um dia, comprei meu primeiro carro e, como ainda estava fazendo barbeiragens perigosas nas estradas, resolvi pedir conselho ao velho Forta:

– Forta, que dica você me daria para dirigir com segurança na estrada?

Ele ouviu a pergunta com atenção e, pouco depois, com convicção respondeu:

– Todo condutor quando começa a dirigir tem medo de cometer acidente. Jamais perca esse medo.

Até hoje levo comigo a sabedoria prática do conselho do meu amigo. Mas além de bom motorista, o Forta tem uma memória privilegiada. Jamais vi algo parecido. Ele se lembra com precisão extraordinária de coisas que se passaram há 40 anos – a pessoa, a data, o lugar. É algo espantoso de ver. Um dia, de férias, eu o visitei, e ele então me levou para conhecer um trecho do rio Paraná de que gosta, bem longe da cidade, lá pelos lados da ilha do Tiéta. Fomos de carro e, enquanto dirigia pelas estradas de terra, o Forta ia-me contando com graça a história das propriedades pelas quais passávamos – a quem pertenciam, quem as comprou, quem as herdou, que fim levou os donos delas. Fiquei tão impressionado com aquela memória prodigiosa que, agora, todas as vezes que desejo saber algo sobre a história da cidade, trato de ligar para o velho Forta, que me explica tudinho com muita paciência.

Outro dia, disse a ele por telefone que estavam reformando o antigo paço municipal. Ele então, velho contador de histórias, explicou-me que o prédio foi inaugurado há mais de 60 anos pelo então prefeito Oswaldo Bernardes da Silva. E precisou a data: “foi em 1956. Sei disso porque foi no ano que nasci”. Incrível, né?

Hoje estou longe do Forta, mas tenho certeza que ele está lendo esse texto, em casa, sentado debaixo de sua área, preocupado com as bagunças do Samuel (aquele da rádio cultura). Ele sempre lê o que escrevo, leitor generoso que é. Outro dia, o Forta completou 64 anos, a mesma idade do antigo paço municipal que passava por reforma, mas não pude estar com ele. Prometi que tornaria a visitá-lo em janeiro próximo, mas a pandemia me fez cancelar a viagem ao Brasil, e aqui continuarei com saudades de todos. Não podendo vê-lo pessoalmente, essa crônica foi a maneira que escolhi para homenagear meu amigo: pelo carinho das palavras.

Crônica: As prosas do Forta

Marcos Vinicios de Araujo Vieira, diplomata de carreira, é aparecidense e mora em Buenos Aires, na Argentina.

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