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Crônica: Os embaixadores dos reis magos

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Samuel (aquele da Rádio Cultura FM) chegou com a última novidade, entusiasmado:

– Estamos fazendo um programa especial na próxima quinta, véspera de Natal. A rádio vai transmitir ao vivo a Festa de Reis direto do Centro Comunitário do Córrego do Ouro.

E assegurou, categórico:

– Vai ser “top” (quer dizer, “muito bom”).

Contagiado pelo entusiasmo do Samuel, agendei o programa: festa de reis, quinta-feira, 24/12, onze da manhã.
Os dias passaram. No dia e hora marcados, sentei-me em frente a meu computador e assisti, pelo canal da Rádio Cultura FM no Facebook, ao programa especial do Nestor Júnior. E não me decepcionei: uma hora a fio de autêntica cultura popular. Tratei logo de compartilhar o link da apresentação ao vivo com meus parentes e amigos. Mandei-o até mesmo para a tia Dorcila, que agora é evangélica, mas antigamente apreciava a folia de reis.

Fazia um dia ensolarado naquele dia. O cenário escolhido para a apresentação dos nossos heróis trovadores foi, como tem sido há 16 anos, o Centro Comunitário do Córrego do Ouro, lugar que preciso voltar a visitar a próxima vez que estiver de passagem por Aparecida do Taboado.

Deu para notar, pelas imagens que chegavam, que tudo ali foi arranjado com esmero e carinho: a decoração caprichada do presépio, as imagens religiosas nas paredes forradas com cores vivas. Os integrantes da companhia “Embaixadores dos Reis Magos”, quase uma dúzia de homens de idades variadas, perfilaram-se, aprumados todos, instrumentos musicais em mãos e paramentados. Estava lá também, claro, a dupla de palhaços, em representação dos soldados de Herodes. Notava-se a satisfação deles todos, sorridentes e bem dispostos.

E nessa disposição de espírito, a cantoria transcorreu conforme a liturgia secular para celebrar o nascimento da Jesus: foi entoado o canto de entrada, com saudações aos moradores e pedidos de bençãos; em seguida, os versos recitados recordaram a viagem dos reis magos do oriente e reforçaram a tradição de adoração do presépio. O ritual, de várias etapas, só terminou com a proclamação do Evangelho e pareceu, ao fim e ao cabo, satisfazer a todos. Na internet, houve curtição geral. Se estivessem num palco, nossos artistas populares seriam aplaudidos de pé.

Gostei do que vi. Terminada a programação, escrevi ao Samuel:

– Gol de placa da Rádio Cultura. Parabéns! Essa programação veio para ficar.

Aquele bonito espetáculo popular me fez pensar em duas coisas. Primeiro, me lembrei do Tim Maia, que homenageou a Festa de Reis na primeira faixa do seu clássico disco de 1971. Pus então a música para tocar no meu aparelho de som. Sim, vale a pena ouvi-la de novo e sempre: o encanto original dessa música permanece preservado. A canção, uma das melhores do Tim, é uma peça divertida que parodia aquela tradição religiosa secular, “meio esquecida, meio esquisita”, que chegou ao Brasil com os colonizadores portugueses:

Eles chegam tocando
Sanfona e violão
Os pandeiros de fita
Carregam sempre na mão
Eles vão levando
Levando o que pode
Se deixar com eles
Eles levam até os bodes

É os bodes da gente
É os bodes, mééé
É os bodes da gente
É os bodes, mééé

Além da genial canção do Tim, aquela cantoria me fez pensar na força misteriosa dessa tradição. Que milagre a mantém viva por tanto tempo?

Minha suspeita é que, no Brasil, a Festa de Reis (assim como tantas outras festas populares) só não caiu no abismo do esquecimento público por obra e graça do empenho heroico de uma legião de devotos que não mede esforços para manter de pé uma tradição transmitida como que por milagre de geração em geração. Pelo menos, parece ser o caso em Aparecida do Taboado.

Em Portugal, de onde veio, a Festa dos Reis continua bastante popular, de norte a sul do país. Entre o Natal (25 de dezembro) e a epifania (6 de janeiro), os portugueses celebram a festa religiosa com cantorias e, claro, com a degustação do legendário “bolo-rei”, que pretende simbolizar as prendas com as quais os reis magos renderam homenagens ao nascimento de Jesus.

No interior do Brasil, a festa de reis resiste bravamente contra as intempéries do tempo e do preconceito religioso. Em Aparecida do Taboado, ela já é uma velha senhora respeitável de um século, mais antiga que a própria cidade, como bem explicou o senhor Anaim Alves de Souza, com a autoridade de quem se engaja nessa festa desde 1963.
Neste ano de 2020, que se encerra debaixo de tristeza geral, nem mesmo a pandemia conseguiu interromper a cantoria do senhor Anaim e seus companheiros (que se reinventaram para respeitar as medidas de distanciamento social nem sempre respeitadas pelos outros), pelo que a companhia “Embaixadores dos Reis Magos” e seus colaboradores merecem nosso penhorado agradecimento.

Crônica: Os embaixadores dos reis magos

 Marcos Vinicios de Araujo Vieira, diplomata de carreira, é aparecidence.

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