Este é o quarto artigo da série histórica sobre o Taboado.
Como mencionado nos anteriores, o Taboado foi fundado às margens do rio Paraná em 1837, quase dois séculos atrás. Ora, por que um porto nas solidões do sul do Mato Grosso? Qual a utilidade?
Nas primeiras décadas do século XIX, Mato Grosso e São Paulo permaneciam praticamente isolados entre si pela via terrestre. Os paulistas costumavam alcançar Cuiabá por navegação fluvial em comboio de canoas, a chamada monção, esplendidamente retratada em tela na pintura “A partida da monção”, de Almeida Júnior.
O declínio das monções com o esgotamento das minas cuiabanas agravou o isolamento entre as províncias. Longas e demoradas, as viagens até Cuiabá pela bacia do Prata – quase única opção que restava – eram ameaçadas pelas disputas geopolíticas entre os países da região (Argentina, Paraguai e Uruguai). Basta lembrar que, em novembro de 1864, o vapor Marquês de Olinda, que transportava o presidente de Mato Grosso, foi aprisionado por tropas do líder paraguaio Solano López no rio Paraguai. O episódio precipitou a Guerra da Tríplice Aliança (1864-70).
Em 1837, governava o Mato Grosso, José Antonio Pimenta Bueno, futuro marquês de São Vicente.
De Santos (SP), Pimenta Bueno ostentava brilhante carreira política que o levaria a cargos de alta relevância, como encarregado de Negócios no Paraguai, ministro dos Negócios Estrangeiros e presidente do Conselho de Ministros do Império. Era um dos estadistas do Império.
Com vistas a romper o isolamento entre Mato Grosso e São Paulo, Pimenta Bueno determinou a abertura de uma picada em mata fechada entre Santana do Paranaíba (MT) e Araraquara (SP). A missão, oficializada por decreto de 22 de março de 1837, foi encomendada ao sertanista Joaquim Francisco Lopes.
A atividade sertanista foi extinta há muito tempo no Brasil. No romance “Inocência”, do visconde de Taunay, consta descrição sobre aquela profissão. O trecho é longo, porém primoroso:
“O legítimo sertanejo, explorador dos desertos, não tem, em geral, família. Enquanto moço, seu fim único é devassar terras, pisar campos onde ninguém antes pusera pé, vadear rios desconhecidos, despontar cabeceiras e furar matas, que descobridor algum até então haja varado. Cresce-lhe o orgulho na razão da extensão e importância das viagens empreendidas; e seu maior gosto cifra-se em enumerar as correntes caudais que transpôs, os ribeirões que batizou, as serras que transmontou e os pantanais que afoitamente cortou, quando não levou dias e dias a rodeá-los com rara paciência. Cada ano que finda traz-lhe mais um valioso conhecimento e acrescenta uma pedra ao monumento da sua inocente vaidade”.
Nascido em Piumbi (MG) em 1805, Francisco Lopes foi um “explorador de desertos” por excelência.
Com o pai, aprendera o ofício de abrir picadas e sobreviver nas matas do sertão. Nessas empreitadas, registradas em seu livro “Derrotas”, conhecera zonas desconhecidas do país, demarcara fazendas no Mato Grosso, navegara rios desconhecidos e batizara riachos e ribeirões.
Algumas vezes enfrentara animais ferozes e, durante uma excursão, chegara a perder um filho, vítima de doença tropical. No final da vida, fundou povoações no Paraná, antes de morrer na completa miséria na colônia indígena de São Jerônimo (PR) em 1868. Quando recebeu a missão de abrir uma picada de 400 quilômetros entre Santana do Paranaíba e Araraquara, tinha 32 anos de idade, mas poucos conheciam com tanta intimidade as maravilhas do cerrado e os perigos que suas matas e rios escondiam.
Francisco Lopes deslocou-se com a família para Santana do Paranaíba em julho de 1837. Para o cumprimento da missão que lhe fora encomendada, contou com dois camaradas, Geraldo da Silva e Manuel Ribeiro, e com o chefe da vila de Santana do Paranaíba, José Garcia Leal.
O primeiro desafio foi a transposição do rio Paraná, efetuada por meio da fundação do porto Taboado na barranca direita do rio Paraná, entre a Ilha Grande e a foz do Quitéria, em julho de 1837. O local se situava no ponto mais estreito do rio, com 834 metros de largura, a 57 quilômetros de Santana de Paranaíba. A travessia do rio inspirava, contudo, certo cuidado, porque sua profundidade podia chegar a oito metros e os ventos fortes e frequentes levantavam ondas.
Francisco Lopes seguiu a abertura da picada pelo interior paulista até a região do Viradouro, nas proximidades das atuais cidades paulistas de Meridiano e Tanabi. Posteriormente, a picada se ligaria, no território mato-grossense, à Estrada do Piquiri, construída em eixo norte-sul para a integração entre Santana do Paranaíba e Cuiabá – um dos tema do livro “Pobres livres nos sertões do sul de Mato Grosso” (editora CRV), da historiadora Cassia Queiróz (a resenha desse livro pode ser lida aqui).
A fundação do Taboado não foi, portanto, fato isolado ocorrido no sul do Mato Grosso no século XIX. Tratou-se, na verdade, de episódio do processo de integração regional e capítulo da história do país.
Marcos Vinicios de Araujo Vieira, de Aparecida do Taboado, é diplomata de carreira.